Espaço Cultural
do Povo
Xukurú do
Ororubá

A LUTA PELA DEFESA DA TERRA INDÍGENA XUKURU E O ASSASSINATO DO CACIQUE CHICÃO: MAIS UMA TRAGÉDIA ANUNCIADA

A morte trágica do cacique Xukuru Francisco de Assis Araújo, também conhecido como Chicão, na manhã da quarta-feira 20 de maio, em Pesqueira - PE, a 212 km do Recife, mesmo causando desolação entre seus companheiros, indígenas ou não, não chegou a surpreender. Sabia-se há muitos anos da nuvem ameaçadora que pairava permanentemente sobre sua cabeça. A qualquer momento, em qualquer esquina ou curva de estrada, a morte o espreitava.

Chicão sabia disso, mas não se intimidava. Ao contrário, com coragem e determinação, aceitava com responsabilidade a missão de guia do seu povo, animando-o a continuar a luta.

Espalhados na Serra do Ororubá, que dividiam e ainda dividem com inúmeras posses não-indígenas - a maioria grandes fazendas de gado, os Xukuru consistiam, até 1986, na expressão de um povo calado e submisso. Relatórios da Funai na época resumiam a área como "pacífica" e "sem conflitos", onde os índios conviviam "harmoniosamente" com os não indígenas ocupantes. A terra indígena Xukuru resumia-se então a 06 ha, pertencentes ao Posto Indígena da Funai. Um exemplo a ser seguido - diziam os relatórios do órgão.

A realidade, no entanto, era bem diferente. Comprimidos cada vez mais pela expansão do latifúndio em suas terras e desgastados pelos sucessivos períodos de seca, os Xukuru chegavam naquele momento ao limite do suportável. Passando a contar com o apoio direto do Cimi - até então proibido de ingressar na área, acompanharam o processo Constituinte de 1987/88, tornando-se cada vez mais conscientes dos direitos pelos quais poderiam lutar. Acenava-se então para os Xukuru uma luz no fim do túnel, e para guiá-los em sua direção a Mãe Tamain (N. S. das Montanhas) revelava um novo líder: Chicão !. Os Xukuru despertavam novamente.

Em 1988 a notícia de projetos agropecuários financiados pela SUDENE para a empresa Vale do Ipojuca S/A, do fazendeiro Otávio Carneiro Leão, dentro da terra Xukuru, levaram ao primeiro grande embate, e à primeira vitória dos índios. O projeto acabou não sendo implantado e os fazendeiros da região passaram a ver com preocupação e perplexidade a reação indígena que então se iniciava. Surgiam aí as primeiras ameaças aos Xukuru e suas lideranças, vindas de pistoleiros e do então delegado de polícia civil de Pesqueira, José Petrônio Góes. Este chegou inclusive a prender alguns índios por estarem dançando o Toré, que, segundo denúncias dos fazendeiros Eudim Bezerra e Zé de Riva, tratava-se de ritual destinado a invadir propriedades privadas. A proibição do Toré irritou profundamente o líder Chicão, então vice-cacique.

Em janeiro de 1989, as ameaças se intensificaram. Acompanhados pelo Cimi os índios denunciaram a atitude do delegado de polícia à Secretaria de Justiça do Estado, o que levou à instauração de sindicância pelo Departamento de Polícia do Interior, onde se concluiu pela "atitude temperamental" do acusado em relação aos índios e pelo seu afastamento para outra Comarca. Ao mesmo tempo, informado dos acontecimentos pela Comunidade indígena através dos advogados do Cimi e da Comissão de Direitos Humanos da OAB/PE, o Ministério Público Federal em Recife instaurou em maio daquele ano, Inquérito Civil Público (n.° 01/89) para apurar a omissão da Funai no tocante à demarcação da terra Xukuru e a violência praticada pelo delegado de polícia. Entre os que depuseram, estavam o vice cacique Chicão Xukuru e o advogado Geraldo Rolin Mota Filho. O inquérito forçou o órgão a dar início ao procedimento administrativo de demarcação da área, através de estudos de identificação que constataram a ocupação tradicional indígena Xukuru sobre 26.980 ha, 15.180 dos quais encontravam-se invadidos. Quanto ao delegado, sugeriu o MPF a apuração do caso pelo Departamento de Polícia Federal, o que não chegou a ocorrer.

Em 1990, diante da omissão da Funai na defesa da posse indígena e da demora na demarcação das terras, os Xukuru liderados por Chicão, então Cacique, recuperavam a posse de Pedra D'Água (110 ha), local sagrado de suas tradições religiosas onde se situam a mata e Pedra do Rei do Ororubá, e que se encontrava até então em poder do Ministério da Agricultura. A retomada dava novo impulso ao reavivamento cultural e religioso Xukuru, e marcava a consolidação do seu processo reorganizativo, com a articulação de quase todas as 23 aldeias em torno do Cacique Chicão.

Em fevereiro de 1992, os Xukuru recuperavam mais uma parcela de seu território tradicional: a fazenda Caípe de Baixo (1.200 ha), sob o pretenso domínio do fazendeiro Milton do Rego Barros Didier. Dias depois, o local sediava um grande encontro de lideranças indígenas de Pernambuco, Alagoas e Paraíba sobre a situação do Estatuto do Índio. A façanha da retomada e a capacidade de união das 23 aldeias em torno dos objetivos comuns do povo, consolidou definitivamente o prestígio do Cacique, que agora se tornava a grande referência para todas as lideranças indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo. As ameaças vindas dos fazendeiros eram tantas que Chicão só viajava após longos rituais de proteção comandados pelos pajés, e mesmo assim, sempre acompanhado por no mínimo dois homens.

Em março de 1992, agora sob a vigência do Decreto n.° 22/91, o relatório de identificação da terra Xukuru era aprovado pela Funai. Em maio, obtinha Portaria Declaratória do Ministro da Justiça, determinando a colocação dos marcos nos limites da superfície de 26.980 ha. A medida causa extrema insatisfação e inquietação entre os fazendeiros. Naquele mesmo ano, em 04 de setembro, os Xukuru tinham a sua primeira baixa na luta: o índio José Everaldo Rodrigues Bispo, filho do Pajé Zequinha, era assassinado com tiro pelas costas pelo fazendeiro Egivaldo Farias Filho. Após a sua fuga, os índios encontraram no local uma lista de 21 nomes de índios marcados para morrer, entre os quais o pai da vítima e o Cacique Chicão. Revoltados, os Xukuru retomaram para a comunidade a posse do imóvel, denominado Sítios Canivete e Canabrava, nos limites da aldeia de mesmo nome.

As tensões continuaram, e em 15 de fevereiro de 1993 as lideranças Xukuru encaminharam ao MPF, Notitia Criminis (n°. 0410/93) na qual denunciavam ameaças feitas pelo autor da morte de José Bispo, por Elenildo Vital de Mendonça - agente da Polícia Civil e seu irmão Heleno Vital de Mendonça.

Em 1994, recuperavam mais 200 ha, de suas terras que se encontravam nas mãos da poderosa indústria Peixe, tradicional produtora de Catchup e extratos de tomate, e que há anos inviabilizava o acesso dos índios às águas de um açude.

Em 1995, a situação volta ficar ainda mais tensa com os trabalhos de demarcação física da área. Recados transmitidos por fazendeiros diziam que "a demarcação da terra indígena poderia até ocorrer, mas rolariam as cabeças do Cacique Chicão e do advogado Rolim", seu amigo e que vinha representando a Funai no acompanhamento aos trabalhos de demarcação da área. Pouco depois as ameaças se concretizaram em parte - em 14 de maio o advogado Geraldo Rolim era assassinado. A notícia constou da publicação do Cimi, "A Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil. 1994-1995".

Com a edição do Decreto n.° 1.775/96, os fazendeiros rearticularam-se contra a demarcação da terra Xukuru. Duzentas e setenta e duas contestações foram apresentadas à Funai, envolvendo sobrenomes de grande influência econômica e política na região e no país: Petribu, Carneiro Leão, Maciel (do vice-presidente da República). Sob vigilância cerrada da opinião

pública internacional, o então Ministro da Justiça Nelson Jobim - pai do Decreto, julgou improcedentes as contestações (Despacho n.° 32/96). Inconformados, os fazendeiros impetraram Ação de Mandado de Segurança (n.° 4802 - DF) junto ao Superior Tribunal de Justiça - STJ, em Brasília. Em 27 de novembro de 96, a liminar requerida pelos fazendeiros era deferida. Em Pesqueira, voltavam à carga novas ameaças aos índios, sobretudo ao Cacique Chicão.

Em 28 de maio de 1997 o STJ, mesmo sem parecer do representante do Ministério Público Federal concedeu o Mandado de Segurança para que fosse reaberto novo prazo para as contestações, com base nos parágrafos 7.° e 8.° do art. 2.° do Decreto n.° 1.775/96. A decisão, que significava um retrocesso na demarcação da terra indígena, dava novo fôlego aos fazendeiros em suas investidas contra os índios. A situação deixara preocupado o Cacique Chicão, que sabia encontrar-se num momento decisivo - e perigoso, da luta de seu povo.

Em setembro de 1997 no Júri pelo assassinato do advogado Rolim, o réu e assassino confesso - fazendeiro Teopompo de Brito Sobrinho, era absolvido por legítima defesa. O Cacique Chicão, uma das principais testemunhas de acusação, depôs perante o Júri sob a proteção de agentes da Polícia Federal. Com a impunidade dos assassinos do advogado, selava-se o destino de Chicão.

O principal sinal do que estava por vir surgiu no mês seguinte. Documento apócrifo e sem data, intitulado "Denúncia Aberta às Autoridades" de uma suposta "Comissão de Justiça e Paz" de Pesqueira, feito em papel não timbrado, acusava Chicão e a Comissão Interna do povo Xukuru de mandantes de diversos crimes supostamente ocorridos na área indígena, alertando as autoridades para o crescimento da violência "na área em processo de demarcação". O documento, enviado ao Gabinete do Ministro da Justiça em 06 de outubro, foi encaminhado à Funai cujo advogado, considerando as irregularidades do documento, solicitou contactar com a autora das denúncias, a fim de esclarecer sua veracidade. Na verdade, a "Comissão" denunciante simplesmente nunca existiu. Carta do Bispo de Pesqueira, Dom Bernardino Marchió, ao Cimi/NE, em 17 de dezembro, comenta inclusive que os denunciantes "usam uma sigla normalmente ligada à Igreja Católica, mas neste caso não tem nada a ver e nem saberia quem denunciar pelo uso indevido da sigla." Indignados com as falsas denúncias, 18 aldeias e o Conselho de Professores Xukuru subscreveram documento de desagravo a suas lideranças, o que foi enviado à presidência da Funai em Brasília - DF.

Apesar de falsa e extremamente maldosa, a denúncia parece ter sido usada como pretexto para a retirada da terra Xukuru do pacote de homologações anunciado pela Presidência da República. Um segundo objetivo – desmoralizar as lideranças Xukuru, principalmente o Cacique Chicão, entrava em curso e, evidentemente poderia ser útil mais tarde, como despistamento para o crime que ocorreria poucos meses depois.

Enquanto isso, o Acórdão, a partir do qual poderia ser interposto recurso contra o Mandado de Segurança deferido pelo STJ, só viria a ser publicado no Diário da Justiça em 19 de dezembro de 1997, vésperas do recesso forense de final de ano. A União Federal, recorreu enfim, da decisão.

Preocupados com o desfecho do caso, e necessitando reagir à situação, os Xukuru fizeram nova recuperação da posse territorial indígena, agora nas áreas de terra denominadas Fazenda Tianante e Sítio do Meio (238 ha), cujo pretenso proprietário, Leonardo Gomes, as havia adquirido posteriormente à demarcação administrativa da terra indígena.

O Recurso Extraordinário da União Federal, no entanto, teve seguimento negado pelo STJ, em razão de ausência de prequestionamento. Desnorteados, os Xukuru - sempre liderados pelo Cacique Chicão, retomaram as discussões internas de avaliação de perspectivas e alternativas quanto à situação da terra. As ameaças se intensificaram. Neste momento, veio o covarde atentado que lhe ceifou a vida aos 46 anos.

Os esforços liderados por Chicão levaram àquilo que até dez anos atrás era inconcebível para a Funai e um sonho irreal para os Xukuru: o reconhecimento dos limites tradicionais da terra indígena e sua demarcação. A área provavelmente já estaria hoje homologada, não fossem o famigerado Decreto 1.775/96, que acabou levando o caso ao STJ, e o fato de o Vice-Presidente da República Marco Maciel, pertencer ao mesmo clã oligárquico que disputa a terra Xukuru em Pesqueira.

Desde a primeira retomada em 1990, Chicão liderou a recuperação da posse de quase dois mil ha das terras de seu povo que estavam em poder de terceiros. As retomadas não solucionaram o problema da terra, mas proporcionaram a recuperação da auto estima dos Xukuru e a melhoria da qualidade de vida das comunidades diretamente beneficiadas, que antes viviam em situação de extrema miséria.

Com seu carisma, Chicão cumpriu também importante papel na difícil e complexa tarefa de rearticulação do povo Xukuru em torno de uma identidade étnica própria e de objetivos comuns, o que veio a se refletir, além da terra, em conquistas nos campos de Educação e Saúde. Antes submissos, os Xukuru passaram a impor respeito.

Por fim, sua luta atravessou divisas estaduais e fronteiras étnicas. Como um dos líderes da APOINME - Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo, Chicão e a luta do povo Xukuru serviram de grande exemplo reconhecido pelos povos da região na busca de seus direitos históricos.

Por isto tudo, que constituiu numa grave afronta à oligarquia local, e até mesmo regional, Chicão foi silenciado para sempre. Numa demonstração de respeito e reconhecimento ao seu trabalho, mais de três mil pessoas estiveram presentes ao seu sepultamento, no solo sagrado de Pedra D'Água, sob a mata cuja reocupação liderou, em 1990, e onde pretendia ser enterrado.

Apesar de tudo, alguns fatos incompreensíveis estão a exigir explicação do Poder Público. Primeiro, até o momento não foi ainda providenciado o retrato falado do assassino, o que já poderia ter sido feito a partir de descrição das testemunhas. Segundo, a completa inércia até o momento do Departamento de Polícia Federal em Pernambuco, que não teria instaurado inquérito em razão de o crime ter ocorrido na cidade, e não dentro da terra indígena.

Terceiro, o fato de as autoridades policiais civis que conduzem as investigações, estarem privilegiando a hipótese de crime passional em primeiro lugar, e de conflitos internos em segundo !. Esta atitude, totalmente absurda, só pode ter um significado: o de que as mesmas forças que levaram à morte do Cacique podem estar agora tentando provocar a sua segunda morte - a sua destruição moral, e a criminalização da organização interna Xukuru. Prova disso é que tais autoridades estão fazendo uso do tal documento apócrifo da inexistente Comissão de Justiça e Paz, no sentido de tentar encontrar nos supostos crimes ali relacionados, uma ligação com o assassinato do Cacique. Com isso, vão se confirmando as suspeitas de que o surgimento do mencionado documento e o seu envio ao gabinete do Ministro da Justiça, já fazia parte da preparação do fim trágico do Cacique, como forma de despistamento dos autores do crime e de sua motivação .

Assim, desconsiderando totalmente as evidências, as autoridades policiais deixam para investigar em apenas último caso aquilo que tem que ser investigado com prioridade: a concretização das ameaças tantas vezes anunciadas pela própria vítima em razão de sua luta na defesa da terra indígena.

Mas neste momento, além da identificação e punição dos responsáveis pela covarde execução do Cacique Chicão, urgem também providências do Poder Público no sentido de se proteger a integridade física e a vida de seus companheiros mais próximos, também ameaçados de morte em razão de sua posição de liderança nas lutas Xukuru. São principalmente os índios Zenilda (viúva da vítima); Zé de Santa, Toinho (vereador do PSB em Pesqueira) e Totonho (testemunha ocular do crime).

Com a mesma urgência, são necessárias também medidas de proteção à líder Maninha Xukuru-Kariri, de Palmeira dos Índios - AL, companheira de Chicão na liderança da APOINME. Desde o dia da morte do Cacique, as ameaças de morte contra a líder indígena voltaram a se intensificar. Na manhã de ontem (29 de maio), em Maceió, no mesmo estilo há pouco utilizado no caso Tupinikim / Aracruz Celulose, no Espírito Santo, Funai e fazendeiros propuseram aos índios a adoção de um acordo lesivo aos interesses indígenas. Conhecida pela sua intransigência na defesa dos direitos originários de seu povo, Maninha pode então ser vista como obstáculo a ser removido para a realização do acordo com os fazendeiros.

Brasília-DF, 29 de maio de 1998.
Cimi - Conselho Indigenista Missionário