Espaço Cultural
do Povo
Xukurú do
Ororubá

CONVIVÊNCIA:

Questões sobre as condições para uma CONVIVÊNCIA da vida indígena dentro da ordem da sociedade nacional no Brasil.

De: Aloys I. Wellen (1)

O Brasil até hoje está caracterizado por sua história como colônia: conquista, ocupação de terras, extinção, expulsão ou submissão dos nativos. Tudo isto é, por sua definição, típico do colonialismo e não somente na América do Sul. Dessa maneira não é nem mais, nem menos do que a continuação do processo de colonização quando ainda hoje, tanto na América do Norte como na América do Sul, se discutem a fundo as questões sobre o futuro da vida dos índios. Essas discussões, por sua vez, são realizadas, antes de tudo, pelos próprios descendentes dos antigos dominadores, mesmo sendo nos países onde ocorrem os enfrentamentos concretos. Também as possíveis respostas requerem um aprofundamento da história até o tempo da colonização. Por isso, uma análise concreta e real, com perspectivas para o futuro, da situação dos índios não pode dispensar um profundo estudo da história.

No território brasileiro, que à época da sua "descoberta" estava, mesmo de maneira dispersa, quase todo habitado por índios, foram distribuídas sesmarias pelo rei de Portugal. Essa distribuição de terra a algumas pessoas, sob condições determinadas e bem definidas, tinha por finalidade colonizar o país, isto é, ocupá-lo de acordo com os interesses dos dominadores. Mais tarde, os bandeirantes assumiram um papel importante nessa ocupação de terras, pois, partindo de São Paulo, penetraram em terras ainda sob controle dos índios, conquistando-as para fins de colonização. Nos tempos mais modernos temos então, como ocorrências marcantes, a fundação e construção da nova capital – Brasília – que exigiu a integração da área centro-oeste, e, finalmente a abertura e construção da Transamazônica para a integração do norte brasileiro.

Sempre se tratava de uma expansão em áreas indígenas e uma modificação dos limites anteriores. Sempre se lançava mão da justificativa de ser necessária a expansão para fins civilizatórios. Neste sentido era mais uma vez a religião que, principalmente pelas missões católicas, realizava com mais eficiência a penetração. Também o progresso, no sentido de "crescimento econômico", justificava a expansão nas áreas indígenas como medida absolutamente necessária. Em todos os casos esta invasão de terras habitadas por índios foi e é justificada como necessária, inadiável e imprescindível para o "progresso".

Hoje, entretanto, muitos vêem, declaram e condenam tais atitudes como arrogantes e que esta justificativa deva ser rejeitada de uma vez por todas. São justificativas criticadas mundialmente e publicamente caracterizada como, no íntimo, de cunho racista e reacionário.

Também no Brasil encontramos essas atitudes de crítica e esclarecimento. Desde do célebre Bartolomé de Las Casas (1474 – 1566), seguido pelos Papas Paulo III e Urbano VIII (1537 e 1539) constatam-se movimentos contra essa tradicional colonização, que defendem o índio como "homem livre" e "capaz como qualquer branco" ou como pessoa humana, portadora de todos os direitos humanos e a quem se deve tal respeito e tratamento. Outra corrente defende que seja dado ao índio, como homem livre, o mesmo tratamento que se dá ao colono. Ao contrário disso, mas de alguma maneira interligado a isso - desenvolve-se e propaga-se a imagem do índio como o "selvagem", às vezes no sentido do "selvagem feliz", outras vezes como "ferroz", "brutal", com usos e costumes desumanos, sempre exigindo que lhe seja dispensado um tratamento dentro desses contextos e portanto diverso.

Com o início do século XX, a corrente do tratamento humano se projeta mais. Influenciado pelos ideais do positivismo brasileiro surge o General Rondon que, como pai espiritual, consegue a criação do Serviço de Proteção ao Índio ( S. P. I.), dando-lhe depois a sua especial caracterização. A partir de 1967, na Fundação Nacional do Índio (FUNAI), aparecem homens brancos, no sentido de não-índios, e assumem uma defesa aberta e cerrada a favor dos índios.

Ultimamente são os próprios índios que levantam a sua voz. Eles mesmos apresentam as suas exigências. Assim, p. ex., temos o cacique Mário Juruna que, desde 1982 como Deputado Federal, defendo no Congresso e fora dele os interesses dos índios. Mas também no âmbito internacional os povos indígenas se reúnem mais e mais para a defesa de seus interesses.

Desta forma seremos confrontados, no decorrer da história, de um lado com o forte colonialismo; de outro lado, porém, também com algo denominado como proteção aos índios; cabendo, entretanto, ao primeiro uma eficiência muito mais representativa. Assim a situação continua até hoje. O colonialismo "interno" ainda hoje é praticado e é formado por uma forte estrutura com base sólida. De maneira geral, apesar de não ser determinante em cada caso individual, essa orientação apresentou-se e pode ser constatada ainda hoje, como a corrente com absoluta predominação com a conseqüência que os índios foram e são expulsos. Prova disto é que, apesar de ter tido no início do século XVI mais ou menos 5 (cinco) milhões de índios, a sua população perfaz hoje aproximadamente 250.000.

É surpreendente, quando se analisa fria e racionalmente, que ainda existem índios no Brasil. Surge neste contexto a pergunta: como foi que eles conseguiram sobreviver como índios, apesar das constantes, contrárias e desfavoráveis condições de vida? Qual a razão por que os outros se entregaram e se acabaram? Qual é o grande mistério, o segredo da sua sobrevivência?

Por isso, levantamos a pergunta: Quais as condições para a sobrevivência dos índios como tais no contexto da sociedade nacional? Desta questão far-se-á necessária uma análise tanto do ponto de vista dos índios como também da própria sociedade nacional. Para determinar as condições por parte dos índios, isto só poderá ser feito tentando constatar e compreender a situação deles, também e antes de tudo pelo estudo histórico. Partindo daí tentar-se-á elaborar perspectivas para o futuro de sua luta com a finalidade de conquistar os seus direitos e sua identidade e/ou de confirmá-los.

Da mesma maneira coloca-se a tarefa de determinar as condições por parte da sociedade nacional. Também aqui isto é feito de forma constante e partindo do estudo histórico, de um lado, e como perspectiva, de outro. Trata-se aqui, portanto, de determinar quais os direitos, quais os métodos, talvez até diferenciados, que perfazem esta política de fato. Quais são os pontos chaves, os pontos essenciais e vitais?

A expressão "sociedade nacional", termo usado na linguagem comum, o será também como termo técnico. Esta expressão não pode ser utilizada para os índios, como também não para outros segmentos da população, num sentido exato, pois a comunidade indígena não tem nada de nacional, quando se enfoca sua descendência em face da unidade de suas tribos; também não se baseia na definição de "Nation" dada por Renan, ao defini-la como "plebiscite de tous les jours". Do mesmo modo, não se deve entender por "sociedade" como se sugerisse uma unidade compacta e homogênea. "Sociedade nacional" significa aqui, portanto, não-índio, dominante, colonial, "branco", ocidental, cristão, capitalista, alfabetizado, de língua portuguesa, "civilizado" vinculado ao Estado. Assim mesmo, não significa tudo ao mesmo tempo, apesar de conter, em seu bojo, uma certa mistura de cada um desses significados.

Além do mais esse termo significa a existência do direito formal com as suas respectivas instituições, como foro, cartório, delegacia etc. Tem, portanto, tudo aquilo no seu conteúdo com o qual ou o que os índios são confrontados ao entrarem em contato com a "civilização".

Mas também o outro lado, a parte do índio, existe uma clara definição do seu conteúdo. Antes de tudo tem como seu núcleo o índio e tudo converge para ele. Para defini-lo temos de observar alguns aspectos importantes. Em primeiro lugar e antes de tudo, queremos ver o índio em relação aos outros e determiná-lo. Aqui, neste contexto, não falamos do índio individual ou do índio marginalizado, sem ter a autoconsciência de ser índio; não falamos, portanto, daquele que vive sem etnicidade e sem maneiras, costumes e vida indígena específica. Na questão pela sobrevivência dos índios não tratamos da sobrevivência física do índio individual.

Também o "silvícola", o habitante da selva, não está em primeiro plano. Como tal é denominado aquele índio que vive e organiza a sua vida na selva sem um contato mais direto com a "civilização". Este também é índio, mas para o direito formal ele não constitui um problema tão importante e, por isso, não ocupa a absoluta preferência. Do outro lado, porém, este é muito importante, pois os índios de hoje têm os direitos originados nos seus antecedentes silvícolas e porque estes direitos também são aceitos e reconhecidos, acima de tudo, nesta fundamentação pela legislação da sociedade nacional. Índio, portanto, é aquele que se considera como tal e é considerado pelos outros como índio. É decisivo que ele, devido à sua maneira de vida, sua situação étnica e sua identidade, queira ser considerado como índio; mas também que, por causa destas condições ou pré-requisitos, seja reconhecido como índio, e, aliás, também discriminado como tal. Esta é, portanto, a definição fundamental de índio. Entretanto, há necessidade de, além desses limites, determiná-lo e analisá-lo mais precisamente. Os índios podem ser diferenciados em distintos agrupamentos. Uma vez trata-se do índio na sua comunidade ainda reservada. Esse é caracterizado pela vida com marcantes características e propriedades dentro da sua comunidade e, pelo fato importante, que (ainda) não ou quase não tem contato com o mundo de fora.

Além disso encontramos como outro agrupamento o índio ligado à vida de aldeias. Esse é caracterizado pelos contatos com aldeias indígenas vizinhas, dentro dum mundo dominado pela sociedade nacional. No meio ou entre estas aldeias de contato comum já podem estar situados colonos, no sentido de posseiros não-índios. Apesar deste contato com os índios de outras comunidades e com alguns posseiros, eles não perdem as suas características próprias, nem exercem, voluntariamente, pressão ou influência sobre a outra comunidade indígena. Eles enriquecem e ampliam, antes de tudo, o seu mundo de contato. Isto em razão da necessidade comum de defender os seus territórios contra as invasões dos inimigos e/ou para a conservação da mesma identidade étnica.

Esse índio, caracterizado pelo contato de aldeia à aldeia, vê atualmente, na continuação e ampliação destes relacionamentos a vital necessidade de se unir num Conselho de Povos Indígenas, que além de constituir-se numa determinada região, p. ex. no Nordeste do Brasil, pode abranger também área internacional, para discutir, numa "União das Nações Indígenas" estratégias de defesa e realizá-las em apoio mútuo.

É preciso analisar a situação jurídico-legal dos índios em vista à sobrevivência como tais. O termo "sobrevivência" aqui empregado deve ser entendido como perdurar (não desaparecer). Além disso trata-se da convivência de índios com não-índios, o que está expresso no termo coexistência. Mais do que isto, visa-se principalmente à boa convivência entre índios e não-índios. Uma boa convivência no sentido de favorável, apoiada, aberta, incentivada, sincera e permanente, tal como definida por Illich no termo "conviviality". Esta convivência não deve ser tomada de forma alguma como produto acabado e pronto, mas é, antes de tudo, um processo de construção do conviver e se realiza por etapas. Decisivo na realização deste projeto é, em primeiro plano, o respeito, no qual se baseia o fundamento do reconhecimento mútuo. Na continuação desta etapa teremos como finalidade – aqui, porém, ainda um pouco como ideal – o consciente querer pela convivência na aceitação e mútua valorização dos valores, tanto dos comuns, como também diferentes. Esta atitude inclui e requer uma abertura para com o outro, sem, no entanto, abandonar a sua própria identidade ou características ou ser forçado a isto. Ao se analisarem as diferenças pode-se realizar uma efetiva aproximação que leva, sistematicamente, a um enriquecimento mútuo.

Para a realização da convivência a terra é de essencial importância. O termo terra não deve ser tomado no sentido vulgar de área aproveitável para fins de agricultura, nem como investimento de capital no sentido de ser objeto comercial de troca e de venda, e sim como fundamento básico para a realização da maneira específica da vida da comunidade indígena. Neste sentido o índio encara a terra como território, como espaço, necessário como ambiente essencial da vida. Partindo da sua maneira característica de vida como da estreita ligação com a natureza, a terra tem o seu significado todo especial. Intrinsecamente ligada à terra é a vida ou memória dos antecedentes, dos mortos, da vida presente como também do futuro.

O problema da limitação do território assume uma importância crucial. Nas tradições, como nos costumes, o território tinha uma limitação natural, quer dizer, dada pela própria natureza, seja pelos territórios vizinhos de outros povos indígenas, seja por limitação pela configuração geográfica, como rios, montanhas etc. Hoje, entretanto, os limites dos territórios devem ser exatamente determinados, para que nesta sociedade caracterizada pela propriedade privada da terra e pela ganância de possuí-la, haja a determinação do direito à terra e sejam estabelecidos limites que também sejam respeitados!.

É conhecida que também a maneira de vida indígena não pode ser tomada, do mesmo jeito como não pode ser o território, como uma vivência fixa, tradicionalmente estável e imutável. A maneira de vida indígena pode ser flexível e sofrer algum desenvolvimento, ao qual diversos fatores têm influência decisiva. Portanto, também esta pode ser "secundária" e novamente modelada ou constituída. No andamento deste processo, então, conforme o esclarecedor exemplo das comunidades e grupos indígenas no Nordeste – revela-se o ritual como ponto chave ou núcleo de vital importância. Este pode ser constatado e conhecido na forma de reformulação ou nova construção de formas rituais e costumes e pode também incorporar elementos "alheios", quer dizer, não tipicamente indígenas, como p. ex., certos rituais que têm a sua origem no culto africano ou na liturgia cristã.

EM: DIREITOS DOS ÍNDIOS NO BRASIL.
Parte do 1º capítulo da tese de Doutorado, apresentado e defendido, em 12 / 07 / 1985,
na Universidade Bremen, Alemanha.